Friday, May 23, 2008

Passando o tempo:

NOITES DE METAL

Cochichavam ao modo de uma conspiração, procurando alguém que pudesse fazer o café. Próximo, ele ouvia tudo, achando absurdo. No meio dos gritos e do choro lancinantes, como alguém pode pensar em café?
_ Ajuda na vigília – a mãe explicou-lhe rapidamente, quando passou por ele, adivinhando a raiva nascente no espírito do filho pródigo.
Mal ouviu. Saiu ziguezagueando entre as pessoas, algumas ainda chegando – a pequena flexão de joelhos à porta, o sinal da cruz, o nome no livro à entrada. No pátio, respirou fundo, involuntariamente, a luta solitária dos pulmões em busca de um ar que não tivesse algo a ver com a morte. Lembrou-se dos cigarros e a vontade de fumar veio súbita. Acendeu o primeiro olhando a rua vazia alguns passos à frente. Rua de paralelepípedos, cidade do interior, a luz fraca do poste de iluminação logo adiante. Tragou o cigarro, sôfrego, a caixa torácica parecendo diminuir em torno do coração, que se debatia para sair do espaço claustrofóbico. Ali, não tinha mais nenhum de seus antigos amigos. Tinha a família, mas freqüentemente ela era só algo perdido no fundo da memória. Tinha sido isso até 48 horas atrás, quando recebeu a notícia e embarcou no primeiro ônibus. Passou a noite pensando no que dizer na chegada, principalmente ao irmão. Com quem estaria parecido? Os laços que os ligavam agora eram frágeis, oxidados pelo tempo. Ficou perturbado durante a viagem toda, que só terminou na manhã do dia seguinte. Dormiu pouco e mal, por causa do sacolejo do ônibus, as estradas piores quanto mais avançavam para o interior.
Chegou a tempo de ver o avô ainda no hospital – ele morreria dali a duas horas. Mal podia agora lembrar da imagem, com a memória chiando como a ignição de um carro a álcool toda vez que chamava por ela. Apenas os sons lhe vinham claramente. Os gritos que ecoavam pelos corredores, enquanto seus olhos voejavam em busca do número do quarto. Numa espécie de sinestesia ao avesso não poderiam ser mais impróprios naquele ambiente branco e asséptico. Gritos de dor, claros – apenas as vogais. Nas poucas pausas, seus passos nos corredores então silenciosos.
E agora ali, em meio ao pátio parcamente iluminado, três ou quatro crianças brincando do lado de fora da capela mortuária, o cheiro de vela queimada que impregnava tudo se misturando com o do café, o barulho dos choros abafados, dos consolos, os soluços, o calor insuportável da noite de janeiro.
Levou o cigarro à boca.
_ Não vai entrar?
Não precisou se virar para saber que era o irmão. Súbito o silêncio – até as crianças pareciam ter parado com suas traquinagens. A idéia de entrar de novo no lugar em queda livre em seu crânio e ele lá, parado, com o cigarro na boca, esperando que ela enfim batesse no fundo do cérebro. Mas era uma queda longa. Percebeu então que tinha ficado mais afetado do que acreditava que ficaria quando a morte anunciada finalmente aconteceu. Demorou um pouco mais para perceber que as mãos tremiam. Sentiu a garganta bloqueada, um gosto acobreado, a vontade de chorar – que engoliu em seco, resoluto. Tentou falar, mas percebeu que gaguejaria. Tragou o cigarro, uma forma de dissimular o suspiro. Controlou-se.
_ Estou fumando. Vou quando acabar.
Sentiu o irmão afastar-se. Dois anos mais novo, não ousaria encher-lhe o saco com qualquer aporrinhação. E naquela noite, as estrelas como dardos prestes a despencarem do céu, ninguém parecia inclinado a uma discussão. Usou a bituca acesa do cigarro já no fim para acender um outro, que agora tragou menos ávido, embora o leve tremor em suas mãos tenha dificultado a tarefa.
A imagem mais recente que tinha do avô mostrava o velho remexendo a terra com uma enxada. Aposentado, trabalhava na horta, como fazia quase todos os dias. O rosto envernizado pelo suor, o bigode grisalho, os movimentos descoordenados por causa do Parkinson. Estava velho, doente demais para coisas daquele tipo, e o neto já perdera as contas de quantas vezes tentara convencê-lo a parar com esse tipo de trabalho. Mas o velho era teimoso, a teimosia senil de um personagem de García Márquez. Ao cabo de muitas tentativas, o neto desistiu – foda-se! Deve pelo menos ser terapêutico.
O avô remexia a terra, tão concentrado na tarefa que demorou para perceber que estava na presença de outra pessoa. Então, ergueu os olhos e viu a figura de magreza atávica plantada, de braços cruzados, o cigarro indefectível pendendo da boca. Não o reconheceu, mas o neto sabia o porquê. Agora finalmente entendia. Ficara muitas vezes ressentido por conta disso, afinal havia sido criado com o avô, mas agora entendia. O cérebro atrofiava, e ele nem sempre consegui associar imagens com memórias.
_ Vô, sou eu.
Pela voz sim, tudo ficava mais fácil. Ainda funcionava. Ele gargalhou as boas-vindas, uma gargalhada que parecia forçada (mas não era, ele ria assim mesmo, e o neto herdara um pouco isso), o dente de ouro brilhando, o abraço suado. Um abraço todo desajeitado, porque o neto era muito alto e o avô vinha definhando, a coluna encurvada por causa da velhice. A força do tempo vergando o fio-condutor de um corpo. Percebeu de chofre o soco desleal do tempo, e pela primeira vez deu-se realmente conta de que um dia também estaria de joelhos, curvado, subjugado pelo peso de uma vida – às vezes boa, às vezes ruim, um saldo neutro.
Agora, na noite calicular, seu corpo absorvia nicotina. Envenenamento voluntário, mas não pensava nisso. Reunia memórias, e só. Sem estardalhaço, sem escândalos, apenas a dor surda do homem interiorano, que ele suportava com a dignidade medida, o orgulho de boomer. Nunca perderia isso.
Só voltou a entrar na capela mortuária no meio da madrugada. No decorrer da noite, velórios tendem a esvaziar. Espiou para dentro do caixão, as velas acesas, o cheiro cálido, poucos parentes rodeando o local. Lá dentro, o corpo vestido tão escrupulosamente como só deve ter acontecido uma vez em vida – no casamento. O neto colocou a mão sobre a alça do caixão e sentiu o frio do cromo que a revestia. Estava cansado, e o café enfim começou a parecer uma boa idéia. Tocou a mão do avô, cruzada sobre o peito, fria como o metal.

Thursday, May 15, 2008

Tolices de maio

Sim. É um mundo tolo. Inclusive em maio. Maio é um mês tolo – igualzinho aos outros 11. Maio é mês das noivas. É casamento que não acaba mais. É uma casamentarada sem propósito. E casamentos são, em grande parte, tolos – com a possível exceção da comida e da bebida grátis.
Acho que só fui a um casamento em toda a minha vida. E a uma missa de corpo-presente. O que, no fim das contas, não significa coisíssima alguma. Sinto-me inspirado a dizer que os dois tinham cara de funeral. Em ambos há choro, seja da família da noiva ou do noivo, que vão perder agora a companhia do filho ou filha, seja pelo presunto em questão, que agora não fará mais companhia a ninguém, de qualquer forma. Ambos têm padres fazendo discursos sobre o passado repleto de louros e de dignidade, seja da noiva ou do noivo, seja do sujeito que acabou de abotoar o paletó. E ambos têm piadas (aliás, funerais são os lugares mais indicados pra quem quer fazer um upgrade de seu repertório de gracinhas). Talvez em funerais não beba-se tanta cerveja quanto em casamentos – o que, apesar de ser um ponto a favor deste, também não o salva de todo.
E eu não gosto de igrejas. Fujo de igrejas como fugiria um vampiro. De vampiros, a bem da verdade, eu até gosto. Filmes de vampiros. Séries de vampiros. Vampiros são descolados, têm sempre seus 200 anos, sempre também com seus sobretudos negros a farfalhar no alto de prédios em madrugadas gélidas abundantemente iluminadas pela lua.
Mas estou fugindo do assunto, tal qual vampiros fugiriam de igrejas, cabeças de alho e estacas de madeira. Melhor encarar de frente o problema: não gosto, portanto, de casamentos. Muito menos quando meus amigos estão se casando. Quando seus amigos começam a casar é porque as coisas estão indo de mal a terrivelmente pior. Nada mais de peregrinações noturnas, de bar em bar, até de manhã cedo. Nada mais de conversas intermináveis que varam a madrugada. Nada mais de xingamentos em uníssono aos juízes dos jogos do Corinthians... Acabou-se. O homem casou. Já era. Perdeu, play.
Um amigo meu casou-se há pouco tempo. Não foi um cerimônia convencional. Nada de cerimônia, aliás. Nada de roupas sociais ou de alguma necessidade de eu pentear minhas desgrenhadas gadelhas. Pra minha sorte, nada de igrejas. O casamento foi um acordo. Juntaram os trapos e ponto.
Meu amigo havia acabado de voltar de Londres, onde, garantiu-me, bebe-se demais, a despeito do exorbitante preço das bebidas.
- Sandoca, lá a gente era capaz de ficar com dívida pra vida inteira.
Lá, continuou, todos, homens e mulheres, saem do trabalho às 17 horas e correm para os pubs, onde ficam drenando litros de cerveja até às 23 horas, quando os estabelecimentos são por lei obrigados a fechar as portas. Depois fica-se vomitando pelas calçadas. Ou, como já estão todos alegres e fáceis, transando-se em apartamentos alugados.
Mas deixemos Londres lá com os ingleses, que em Londres ingleses há aos montes. Bem em cima de Greenwich, que é onde a sensatez geográfica diz que ela deve ficar. Voltemos ao casamento.
Alguns amigos em comum organizaram uma pequena despedida. Assinamos o epitáfio do noivo. (Um a zero pro casamento. É uma batalha perdida.) Resignei-me. Lá pelas tantas, lembrei do show dos Stones, em 2006, em Copacabana. Nós e a parafernália toda berrando Jumpin Jack Flash no maior volume possível.
Bons tempos.

Tuesday, May 13, 2008

UM GUARDANAPO ESCOLHIDO

Apenas pra não passar em branco:

Naquela noite Walter finalmente entendera, embora ainda não conseguisse nem ao menos esboçar o teorema de sua própria compreensão. Balançou a cabeça ostensivamente de um lado a outro, tentando reordenar as idéias embaralhadas pela bebida – o convidado que no êxtase da festa bagunça a louça ao esmurrar euforicamente a mesa posta. Mas a verdade estava lá, o núcleo principal, dançando em seu crânio como uma barra de sabão em um piso polido e molhado. Incomodava, era de uma selvageria cruel, indômita. Ecoava. Jamais conseguiria, e essa previsão futurista chegava a ser tangível. Não poderia conseguir, porque era ruim, absurdamente ruim naquilo que gostava, e ao mesmo tempo não poderia fazer mais coisa alguma. Passaria a vida mendigando, seu orgulho rústico de trabalhador braçal torturado dia a dia. O orgulho, a chave da câmara. Mas seu orgulho, o orgulho dele, diante daquele balcão sujo, embalado pelos berros de bêbados eufóricos, lado a lado com cervejas que suavam, operárias tentando trazer o mínimo de conforto a homens perdidos como crianças, o orgulho de Walter apoiava-se em muletas. Havia um sujeito mais forte do que ele em cada esquina, mais forte, mais empenhado, mais suscetível a se deixar moldar. Aquela magreza cadavérica, atávica, não era apenas física. Era um reflexo psicológico, um reflexo de seu emocional, da quantidade de fichas que estava realmente disposto a apostar no mundo. Seu orgulho ficava a cada dia mais trôpego e por isso perdia a razão de existir. Não era mais fortaleza, era cama de faquir em brasas. Ele sentia a planta dos pés esfaqueadas, o coração de fumante engasgado, cheirando a diesel. Ele todo, aos vinte anos, virara uma figura disforme, volátil, um fantasma de si mesmo, apenas ectoplasma. Assim, suscetível como um paciente em estado terminal. Tão medíocre quanto um viciado de longa data.