Wednesday, November 05, 2008

O legado de minhas misérias

Meus olhos vão ficando gastos. Hoje mesmo, resolvendo uma pendenga com Jorge Amado, de repente as letrinhas se embaralharam, afoitas, e quase que entram em luta corporal e confundem todo o bom parágrafo do bom baiano. Humano que sou – demasiado humano –, culpei as letrinhas, porque humano que é humano sempre precisa arrumar algo – ou alguém – em quem pôr a culpa; está inscrito no DNA. No fundo sei, porém, que a culpa é minha. Semana passada mesmo andava com dor nas costas. É a idade. A velhice bate à minha porta, caquética, de bengala, cabelos ralos e brancos. Aguardo para breve o enrugamento da pele e a incontinência urinária. Vinte e um anos, tão novo!, dirá a meia dúzia de gatos pingados que comparecer ao meu funeral quando, enfim, quando eu bater as botas, ir para as cucuias, vestir o paletó de madeira, pedir o boné. Talvez mamãe chore. Tão novo!

Não tenho medo, mas encasqueta-me uma coisa. Que saldo deixo nesta vida? Diz-me a sabedoria popular – que nem sempre é sábia e geralmente está a dizer besteiras – que um homem deve plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho.

Vejamos.

Árvore eu plantei. Devia ter sete ou oito anos, creio, na escola, por ocasião de algum dia da árvore. Verdade seja feita, quem fez o trabalho pesado foi o zelador, o seu Arlindo, homem de poucas palavras e poucos sorrisos – para mim, ao menos, que vivia a infernizar-lhe a vida. Tudo que fiz foi atirar a mudinha de fícus na cova já feita, cobrir-lhe de terra e regar-lhe. Tenho provas, caso algum dia a sabedoria popular venha querer tirar satisfações. Está tudo registrado numa fotografia, uma indefectível prova de como sou feio e desajeitado diante do mundo. Estou lá, de calças curtas, o cabelo então muito loiro e liso a cair-me nos olhos, esforçando-me a segurar com as duas mãos um regador na altura adequada. Bem verdade que a pobre da árvore não viveu para contar a história. Tivemos a infeliz idéia de planta-la justo no lugar do pátio que usávamos para jogar futebol e brincar de pegador, no recreio. A sabedoria popular, porém, na diz a respeito da árvore precisar crescer forte e frondosa. Plantar, eu plantei. Tarefa feita.

Livro eu não escrevi. Ainda. Mas quem sabe um dia brinde o mundo com duzentas a trezentas páginas das besteiras que eu digo e penso – quase sempre faço também. Quem sabe ganhe algum prêmio da Academia de Letras do Centro Cívico, se até lá alguém se der ao trabalho de funda-la. Serei cumprimentado por vizinhos, talvez. É possível. Acho que será uma história de amor, que precisamos reservar um espaço para o amor nesta vida, e como o amor só fica bonito nos livros (amor, coisa para amadores), sapecarei ele lá mesmo. Sim, o amor fica bonito nos livros. Vide O amor nos tempos do cólera, O grande Gatsby, O sorriso do lagarto. A insustentável leveza do ser, não. Desse eu não gosto.

Já escrevi um conto de amor. Quer dizer, mais ou menos de amor. Era meio de ódio também. Não tinha aprendido ainda que a raiva não escreve. Aliás, não sei se aprendi até hoje. Quatro páginas das quais arrependo-me. Envergonho-me até. Fiz besteira. Não devia ter feito. Já me livrei dele. Pena ter inscrito ele num concurso. Espero que percam ele por lá, dêem sumiço no troço. Espero também a consideração dos dois ou três leitores, no que tange meu futuro livro. Favor, não me ler no banheiro. Tenho horror à idéia das pessoas lendo-me no banheiro. O sujeito lá, fazendo o que se faz no banheiro (não me peçam para escrever aqui, por favor, respeitem as senhoras), e me lendo. Merda!

Perdão, senhoras. Escapou-me.

Fato é que esse projeto é para depois. De qualquer forma, tenho um blog. Dois, na verdade. Um com os coleguinhas de jornalismo e outro só meu, que preciso de um espaço privado onde possa mandar e desmandar sem ser importunado. Gosto de mandar e desmandar. Sou um sujeito mandão. Será que blog vale? A sabedoria popular também nada diz a respeito de blogs. Dúvida. Receio. Ah, deve valer.

Já filho, isso eu nunca fiz. Acho. Homem nunca tem muita certeza dessas coisas.

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