Tuesday, July 15, 2008

Estela

Estela era um nome forte. Pairava no ar depois de pronunciado. Como Stella Maris, a estrela que guiava os navegantes perdidos. De certa forma, ela o guiava. Jorge encostou-se no sofá e acendeu um cigarro, calado, enquanto ela, trêmula, tomou mais um gole do chá calmante.
_ Meus nervos... – balbuciou, repetindo as mesmas duas palavras que já dizia há exatos dois anos.
Era a única coisa que diria. Mas o tempo fez com que Jorge se acostumasse com aquele silêncio violento. Por vezes ligava a tevê para fazer companhia mais do que qualquer outra coisa. Pensou em atravessar a pequena sala até o aparelho, porém não teve tempo de decidir-se. A chuva batucava a vidraça; uma melancolia parecia borrifada no ar, como perfume; ele sentiu o frio embrulhar o braço magro como papel laminado... E saiu do ar, mesmerizado. Seu pensamento desprendeu-se, levado por balões de hélio.
Viu-se todas as noites, no mesmo horário, colocando uma chaleira de água para ferver, preparando diligentemente uma efusão, separando algumas pílulas e encostando-se na pia da cozinha. Esperava, no escuro, o grito de horror que viria do quarto ao lado. Sempre às 02h42 da madrugada Estela acordava de mais um sonho – um homem jovem em um lugar agitado, uma rusga, um revólver, um dedinho nervoso no gatilho. Cronometrado, cravado, como que um capricho de deus ou do diabo, a reconstituição daquela noite desgraçada lhe vinha à mente.
Dois anos antes, quando o irmão morrera numa tola rixa de bar, havia sido duro para ambos. Jorge ainda tinha a alma dilacerada pelos golpes brutos de um punhal férrico mas invisível, ainda banhado pelo negro-corvo do luto. Porém avançara. Como um boxeador cambaleante, agarrado às cordas, se reerguia, aos poucos, grogue, tonto pela inglória daqueles tempos aziagos.
Estela – a irmã – não. 730 noites havia reconstituído aquela morte, com uma nitidez violenta, o mesmo vivo brutal do escarlate. 730 noites matara Carlos, o mesmo projétil, a mesma expressão de vilania no rosto do atirador, o mesmo chão quadriculado. Acreditava ser a responsável por um martírio eterno, o martírio do irmão morto. Talvez dois martírios; também o martírio do irmão vivo que, como um asceta, suportava-a. A paz, o descanso censurado para ambos. Um condenado a morrer a mesma morte centenas, talvez milhares de vezes – até onde poderia ir aquilo? O outro condenado a uma só vida, desgraçada, patológica, obrigado a organizar tudo em torno daqueles pesadelos tenazes. Nos momentos em que não sonhava, Estela ruminava essas idéias, esgotava-se tentando dissipar aquela matéria mágica e intangível do sonho, procurando uma brecha em sua psique que desse a dois homens miseráveis algum descanso – Carlos descansava? Ou morreria para sempre, toda a noite, condenado a morte eterna como o ser mitológico obrigado a arrastar a mesma pedra por todo o sempre? Todos os dias Estela pensava naquilo – e pensava o dia todo, tentando evitar à noite indefectível. Mas os meandros de sua mente lhe escapuliam – e o sonho, difuso como neblina, esgueirava-se de volta para dento de seu sono – infalível.
Jorge, no seu estupor, o pensamento vagueando por campos estéreis, importava-se pouco consigo mesmo. Nos dois anos que se seguiram a morte do irmão, agarrou-se com todas as forças que tinha ao único pedaço de sua carne que lhe restara. Estela era a última. Os pais eram só uma lembrança pouco nítida, um daguerreótipo rústico. Por causa de Estela afastou-se de todos. Por causa de Estela dava, de bom grado, a vida. Estava unido a ela por aquele inquebrantável laço de lealdade que costuma unir somente os irmãos homens. Transferira aquilo para Estela depois que Carlos morreu – súbito a lembrança, o trovão do tiro, o sangue no cão, a nefasta e diabólica combinação do vermelho com o preto e o branco do piso. E agora, só Estela – estrela –, com a qual se ligara com laços que beiravam o tribal, uma espécie de náilon indivisível, impartível. 730 vezes havia ouvido o mesmo grito e o ouviria outras 730 vezes se preciso, nem que fosse levado à loucura, junto com ela.
Naquela noite, entretanto, Estela havia tomado uma resolução inabalável.
Começou a se levantar, e o movimento trouxe Jorge de volta, como que agarrando-o pelo colarinho. Ela fez o que fazia toda noite: apoiou a xícara numa mesinha que ficava no centro da sala, olhou um pouco abobalhada em volta – um apartamento pequeno, simples, mal cuidado. Sem dizer palavra, começou a arrastar os chinelos, de volta para o quarto. Jorge tranqüilizou-se. Até as 02h42 seguintes, sabia que o pesadelo atroz não voltaria a importuná-la. Recolheu a xícara e a apagou as luzes. Conferiu as janelas, pois a chuva prometia se transformar numa tempestade durante a madrugada. Na terceira, deu com um corpo informe estatelado no pátio interno. Brilhava intensamente, como um canhão de luz. Uma estrela havia caído.