Saturday, March 01, 2008

Professores de redação jornalística de todo o mundo, perdoem-me pelos períodos longos.

MEMÓRIAS MEMORÁVEIS

Jesus, vamos ser aniquilados, penso eu, enquanto olho em volta e procuro uma alternativa que possa evitar que acabemos grudados às solas das botas de um bando de caubóis chapeludos. Pense homem, pelo sangue de Jesus Cristinho, ra-cio-ci-ne! Já! Corra, fuja, sebos nas canelas, teletransporte-se se possível. Mas suma daí, e suma agora!
Tinha sido idiota, e o fato era particularmente notável. Mas tente convencer uma cabeça narcotizada e cheia de uísque de que deixar o aconchego de um apartamento numa noite chuvosa de sexta-feira para ir a um lugar de que você não gosta, e onde não gostam de você, não é uma idéia exatamente esperta. Ainda mais quando tínhamos dvd’s suficientes para sobreviver até o sábado de manhã. É impossível! Sua cabeça não é mais sua aliada. Ela está contra você, e vai fazer todo o possível para que você se estrepe. Duas cabeças nessas condições é praticamente um atestado de insanidade autenticado em cartório. Engata a quinta e aqui vamos nós, para o bem ou para o mal – geralmente para o mal.
Existe uma porção de coisas que você pode prever. Você pode prever, por exemplo, que ficará bêbado se tomar mais uma ou duas doses de uísque. Você pode prever, também, que encontrará um monte de gente marrenta, forte, cheia de raiva viva, doida para desmaterializar um rapaz esquelético e com look de usuário de crack se for para um clube country. Mas você jamais, em hipótese alguma, sóbrio ou não, pode prever que no mesmo clube country em menos de meia hora um amigo seu vai tentar beijar a namorada de um brutamontes, roubar o chapéu de outro, correr em um ambiente onde mal se pode andar – derrubando mais brutamontes –, xingar seguranças, discutir na fila do banheiro, etc, etc, etc... Se tentasse imaginar isso, ordenaria a seu próprio cérebro que deixasse de ser imbecil e começasse a raciocinar como um cérebro em estado aceitável deve raciocinar. Nada disso! Estaria fora de questão, naturalmente.
Mas, peraí, estamos perdendo o foco aqui. Temos uma situação espinhosa. Precisamos estabelecer uma lista de prioridades. E no topo dela deve, incondicionalmente, constar o tópico que nos manda fazer o possível para evitar uma morte súbita e sem misericórdia.
Cá estamos, frente a frente com sete ou oito caubóis bravos pra cacete e sem nenhuma saída de fácil acesso, sem nenhuma alternativa para sair dignamente da situação e não ser tentar socar umas faces e ser socado – com a balança pendendo consideravelmente para o último citado –, torcendo para que os seguranças percebam a coisa toda antes que comecemos a ouvir o barulhinho de ossos se esmigalhando.
Dou-me conta de que há uma mesa atrás de nós, encostada na parede, a mesma parede que, calhordamente, impede a vergonha de uma fuga covarde, mas que poderia evitar o impingimento de danos físicos irremediáveis a mim e a meu amigo irresponsável. Aos fatos: havia garrafas na mesa. Dei três passos pra trás e segurei uma pelo gargalo, atitude que levou nossos amigos caubóis a atirarem-se de vez em cima da gente, como cachorros de rua atiram-se visceralmente a restos de açougue. Ergo a garrafa o máximo que posso e a desço velozmente, mas meu braço esbarra no meu parceiro de noite maldita, que já está sendo esmurrado ao lado, e acerto o alvo com uma potência menor do que eu havia previsto. É suficiente, no entanto, pra quebrar a garrafa. Um a zero pra mim, penso, mas o placar é revertido nanosegundos depois, quando ganho um baita chute nas costelas que quase me derruba. Sem técnica alguma, começo a bater em qualquer vulto que esteja ao redor, vultos extremamente violentos, que revidam com golpes de uma força que creio ser bem maior que a minha – coisa que provavelmente nunca poderei comprovar cientificamente, em testes empíricos, pois só um completo louco esmurraria a si mesmo, a fim de ter parâmetros de comparação. E ficamos nessa, executando nossa dancinha lunática, perigosa e psicopatológica, socos acertando minha orelha esquerda, socos acertando meus rins, chutes acertando todo e qualquer centímetro quadrado de meu corpo.
Onde se enfiaram os malditos seguranças, penso – um pensamento bem burro, por sinal. Quem pensaria isso enquanto é golpeado de forma impiedosa por algozes nada polidos? Mas eles chegam, enfim. Senhor, o que estava esperando para mandar a cavalaria? Os homens de black-tie abrem caminho na marra, empurrando todo mundo pro lado e me pegam pelo braço – modo cortês de dizer que torcem meu braço pra trás e me arrastam até a porta de saída, de onde sou jogado na rua chuvosa. Instantes depois lá vem meu amigo, e quase posso ouvir um diretor de cinema bradando “corta!”, já que o ritual parecia mais um ensaio da minha cena anterior, agora com dublê. Esses caras são mesmo profissionais, penso, com o pouco de bom humor que ainda consigo extrair de meu corpo dolorido.
– E não voltem mais aqui!, grita um caboclo alto, que devia medir uns três por dois.
– Você que manda, chefia, respondo eu, rindo um riso nada apropriado para a ocasião.
E começamos a caminhar de volta pra casa.


(Nem tudo é verdade. Quase nada é mentira)