Friday, November 16, 2007

tentativas, tentativas, tentativas...


Quando o lobo engole a lua
Caio do colo de Morfeu às duas e meia e tateio a cabeceira da cama, em vão. Não há cigarros no lugar onde costumo deixá-los. É sempre madrugada quando os maços deixam a gente na mão. Sento, percebendo que ainda estou um pouco bêbado, e afasto as persianas da janela. Curitiba, indefectível, está ali, embora na penumbra o centro não passe de um amontoado de pecinhas de Lego, desleixadamente montadas. Tão infalível quanto a cidade é a garoa, que flagro contra a luz cambiante de um poste de eletricidade.
Tento não pensar em cigarros. Tento não pensar em nada. Mas é impossível, e minha cabeça, que independe de minha vontade, como um gravador, volta a fita do dia. Converso com minha avó, ao telefone, cinco ou seis horas antes:
– Então, que tal Curitiba? – ela quis saber.
É a enésima vez que respondo essa pergunta, e já faz três anos que saí da cidadezinha onde morei com ela, o que não parece ter dado cabo da questão.
– Ah, é que nem aí – digo – Tem mais ruas asfaltadas, botequins, um punhado de praças sem serventia. No fim das contas é tudo a mesma coisa.
É verdade. Ou não. Saio pela casa apagando as lâmpadas, que por algum motivo deixei todas acesas, defendendo os olhos, com a mão, da luz obscena que agride minhas retinas recém dormidas. Na sala, do décimo andar, esquadrinho as ruas do centro, que parecem bem menos confusas do alto. Mas a perspectiva é enganosa, porque sei que lá embaixo, contudo, são como uma arapuca, deliberadamente pensada para pegar forasteiros.
Abaixo a persiana, ergo a gola do casaco e saio, depois de beber num gole o resto de conhaque que encontrei num copo sobre a escrivaninha.
No shopping em frente, milhões de luzinhas de Natal me saúdam com acenos em forma de intermitência. É só o meio de novembro e a cidade já começa a adquirir o jeitão de penteadeira de puta que terá em dezembro. Do meio da avenida, de brincadeira, tento fazer a milhagem dos pontinhos luminosos, com a mesma displicência que faço as palavras cruzadas da Gazeta dominical. Tão impossível e sem utilidade quanto contar estrelas. Desisto e começo a caminhar, enquanto meu hálito se engalfinha com o ar gelado e, em minha cabeça, a fita continua. Honestamente, esperava que o conhaque pudesse ter editado algumas partes. Não o fez. No telefone, alguma coisa sobre como nunca devo esquecer de onde vim. Nem se eu quisesse conseguiria. O passado é, estranhamente, algo muito presente, e pouco importa a cidade onde você esteja. Minhas memórias estão frondosamente ramificadas em uma mente de vinte anos, invalidando-a, como árvores que não são podadas e cujas raízes cresceram em demasia, estourando e inutilizando a calçada.
Tropeço em uma dessas irregularidades calçadísticas e quase me estatelo contra as grades que circundam o Passeio Público. Ergo os olhos e diviso aquela construçãozinha bordô com escritos arabescos, próxima à linha do biarticulado. Não sei o que é e nunca tive tempo – vontade? – de ler a plaquinha explicativa da prefeitura. Mas sei que são duzentos passos dali até o botequim de um chinês, que sempre está aberto e fica em frente a onde deveria estar a genitália do homem nu. Uma vez eu contei. Sei também que os chineses são muitos por aqui e, às vezes, penso que todos os que sabiam fritar pastéis na China fretaram uma horda de navios e vieram para cá. Foram se instalando e espalhando seus sotaques cantarolantes pela cidade.
Sotaques que ouço na lanchonete, onde dois ou três mendigos tomam cachaça a cinqüenta centavos no balcão. Compro um maço de cigarros de uma marca qualquer. Eles nunca têm a minha. Na porta, onde faço o isqueiro liberar a bomba de nicotina barata que estava calhordamente enclausurada num bastãozinho branco, diviso a Praça do Homem Nu. Fico olhando para ela muito tempo, observando detalhes, enquanto fumo, para clarear as idéias e escurecer os pulmões, e a fita roda em minha cabeça. Acabo reparando que as raízes de árvores mirradas já começaram a roer o concreto que rodeia o gigante de pedra.

2 Comments:

At 1:17 PM, Blogger Flávia said...

É uma merda não ter cigarro de madrugada. Uma grande merda.
Ainda bem que me mudei e na esquina de casa tem uma padaria 24h com todas as marcas de cigarro do mundo.

 
At 11:32 AM, Anonymous Anonymous said...

Ai, que raiva! Eu entro aqui há um mês e nada do Sandoval atualizar esse blog.

Chato, chato, chato.

 

Post a Comment

<< Home