Monday, September 24, 2007

CONFRARIA DOS JORNALISTAS BÊBADOS E FRACASSADOS
(ou de como você se torna um escritor ruim e frustrado)


...

Obviamente, aquilo já havia transcendido todos os limites do aceitável.
Tudo nela o irritava. Irritava-o a visão disneylândica da vida. Irritava-o os imperativos estraçalhados entre os dentes, o jeito de falar de uma mãe que, apesar de não atender ao capricho do filho, tenta evitar o escândalo de um acesso de rebeldia pueril em pleno supermercado. Acima de tudo, irritava-o sua convicção de que poderia convencê-lo a continuar com aquela coisa idiota.
Merda.
Walter jogou o corpo para trás na cadeira e deixou os braços penderem. Estava irritado, cansado, acuado. Havia um circo e havia um cospe-fogo, que começava a ensaiar seu número muito perto da tenda.
Meteu a mão no bolso do jeans surrado e tirou um maço de Marlboro. Enfiou um na boca. Com a mão esquerda em concha, protegeu o estopim do vento tênue que entrava pela janela; com a direita acionou o isqueiro e sentiu a onda de nicotina e monóxido de carbono percorrer suas vias respiratórias até abraçar ternamente cada um de seus alvéolos pulmonares. Acalmou-se. Soltou a fumaça pelas narinas e viu a nuvem pairar, malcriadamente, em cima da mesa. Sabia que ela odiava aquilo. Mas quem diabos se importava?
– O que você me diz? – perguntou ela.
A questão arrancou Walter de seu estado de resignação empedernida.
– Digo que você deve estar mentalmente perturbada se acha que vou concordar com isso.
Ele levantou os olhos. No outro lado da mesa, ela estava tão transtornada que parecia ter levado um soco no plexo solar. Encarou-a e, por um momento, pôde ver dentro de sua cabecinha oca como se as órbitas oculares estivessem vazias. Todas as idéias que antes borbulhavam num anárquico pique-nique, agora estavam em fila e entreolhavam-se, como crianças que haviam acabado de quebrar uma vidraça.
É como ver tevê, pensou Walter. É exatamente como ver tevê. Você passa pelo espectro de luz num domingo pachorrento, ouve algo e se espoja no sofá. Senta pra ver uma coisinha interessante e acaba ficando lá o dia todo, hipnotizado. Cores, cenários, mulheres peitudas em comerciais de cerveja, gostosas em comerciais de cartão de crédito – a melhor parte são os comerciais. Você ia gastar cinco minutos e acaba perdendo o dia todo. Relacionamentos são exatamente como televisão.
O lusco-fusco da rua fazia as garrafas no balcão brilharem. As mesas inoxidáveis tinham um fulgor laranja. Algum bêbado resmungava alto ao fundo. Na rua, o pessoal da manutenção de sabe-se lá que martelava alguma porcaria qualquer. Um bate estaca regular que parecia um código marcial.
– O que você quer fazer? – perguntou ela, agora um pouco mais centrada, consciente do fogo.
– Nada. Quero levantar, pagar minha bebida e ir embora.
Perto da mesa, o garçom deixou uma garrafa de doze anos espatifar-se contra o chão polido. Um milhão de cacos encharcados de uísque de 80 pratas espalharam-se, dando a impressão de que competiam pra ver quem riscava a maior área. O homenzinho vestido de pingüim agachou-se e começou a secar o chão com um constrangido sorrisinho de desculpas. Walter olhou pra fora e deixou a laranja luz do mundo agredir o escarlate de seus olhos insones. Fez um gesto com a mão, como se quisesse espantar um pensamento que zumbia, inconvenientemente, ao redor de sua cabeça.
O homenzinho levantou-se e formalizou seu pedido de desculpas. Walter fez um gesto com a cabeça, que na verdade não dizia muita coisa, enquanto o garçom virava-se e desaparecia dobrando para um corredor. Voltou dois minutos depois com uma daquelas pás domésticas pra juntar quinquilharias quebradas.
Fernanda já estava de pé, vestindo o casaco de veludo lavado, com o rosto redesenhado por aquele tipo de irritação desesperada e contida, inefável, típica das mulheres, que a qualquer momento pode explodir num acesso de histeria geral de choro, gritos, tapas e arranhões. No entanto, não foi o que aconteceu. Ela fez um gesto ao sujeito do balcão e desapareceu no laranja avermelhado da rua.
No circo, o domador havia convencido o cospe-fogo a ir brincar em outro lugar.
O garçonzinho finalmente jogou todos os pedaços de vidro numa pequena lixeira e sumiu de novo, dobrando para o corredor. Walter deu um gole na vodka que ficou esquecida na mesa. Sorriu amareladamente ao perceber que, na verdade, quando você pensa que chegou na pior parte, fica assustadoramente fácil.
Largou uma nota de vinte sobre a mesa e vestiu o casaco. A bagunça estava limpa.

1 Comments:

At 12:23 PM, Anonymous Anonymous said...

mulheres. clichemente é impossível viver com elas e impossivel viver sem elas.

genial, cara.

abraço

 

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