Monday, November 12, 2007

Tenho uma professora que encasquetou que deveríamos escrever o primeiro capítulo de um livro-reportagem, este semestre. (Bem, de qualquer forma é melhor do que ficar fazendo ensaios a respeito de pueris teóricos da comunicação.) Segue o início do meu (a bagaça toda tem dez páginas, muito longa pra pôr aqui):

Nas Ruas
Histórias escolhidas de quem vive à margem da grande highway

1
Marcelo D. gosta da rua, mora nela por que quer. Tem família, filho e um imóvel que comprou com o dinheiro que recebeu de herança depois da morte do pai, em 2001. Mas prefere a rua, mesmo debilitado, conseqüência dos 13 anos em que seu organismo está com fronteiras não patrulhadas. Marcelo é portador do vírus da Aids, desde 1994, e viciado em crack há seis anos. Álcool e cocaína fazem parte do seu cardápio de psicotrópicos há duas décadas. No mais, já passou por quase tudo: maconha, cola, anfetaminas, chás alucinógenos.
Tudo isso está configurado no rosto magro e chupado, nos braços finos em que, através da pele, pode-se ver um perfeito mapa de seu sistema circulatório. A tez calcinada pelo sol é uma máscara de rugas típica da idade, 40 anos, mas anabolizada pelos anos de vida desregrada. A voz rouca de uísque combina com o conjunto da obra. O jeito de falar, lento, arrastado, com grandes pausas e, às vezes, repetindo sentenças inteiras, revela um raciocínio que com certeza já teve dias melhores.
Marcelo D. fala em segunda marcha. Pensa, também. A vida nas ruas não poupou seus sistemas cognitivos. Raramente consegue elaborar períodos muito longos sem se perder. Freqüentemente precisa voltar, retomar o raciocínio – o que muitas vezes faz com que o mesmo fato tenha versões diferentes, na sua tentativa de se fazer entender. Não há como saber o que é verdade ou o que é fantasia na história de sua vida. Percebe-se facilmente que seu cérebro está em um processo de degeneração irremediável.
A fantasia de Marcelo é nutrida pelos livros. Ele é um leitor contumaz, freqüenta a Biblioteca Pública do Paraná, passa horas lá dentro, entre Balzacs e Rimbauds. Usa a literatura para calafetar as lacunas que o álcool e as drogas produziram em sua memória. Quando conversamos, reconheci em uma de suas histórias a passagem de uma obra de Charles Bukowski, escritor americano: “Tinha um trabalho burocrático de merda, mas gostava de ler e às vezes escrevia alguma coisa. Gostava de escrever e tinha boas idéias, até. Mas daí eu bebia e fodia tudo”.
O trabalho burocrático de merda de Marcelo D. era na Prefeitura de Curitiba, onde dava aulas de datilografia. Antes disso, tinha trabalhado numa agência de publicidade, mas não consegue explicar exatamente em qual cargo. Deduzi, por suas explicações, que trabalhava no setor de criação. Vinha de família abastada e, apesar de já ser usuário de cocaína, tinha uma vida relativamente tranqüila até 1994.
Nessa época, enfraquecido por alguma doença que não podia identificar, Marcelo visitou um primo médico. O parente pediu uma amostra de sangue, para fazer alguns exames, a fim de descobrir qual era o mal que o havia tornado imprestável para qualquer atividade nos últimos dias. Desconfiava de anemia. Quinze dias depois, o primo chamou Marcelo:
– Marcelo, quando você vai parar com esse negócio de cocaína? – quis saber o primo.
– Quando morrer, eu paro.
– E se você pegar Aids?
– Se pegar Aids vou continuar do mesmo jeito, minha vida vai ser igual.
O primo, então, assinou a sentença: disse a Marcelo que havia mandado seu sangue para um teste de HIV. Sim, ele era soro positivo. No início, não se abalou. Pensou que tudo fosse uma armação do médico da família com sua mãe, numa vã tentativa de faze-lo perceber que precisava puxar o freio de mão. Mas Marcelo não só cumpriu o que havia dito ao primo, como foi além. Saiu de casa e começou a sobreviver cuidando de carros nas ruas.

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