Friday, August 15, 2008

o "um" ali significa que a idéia é dar continuidade. oremos.

CRÔNICAS CAIPIRAS DE CURITIBA – I

Por aí... perdido

Quem me vê andando por aí – cigarro entre os dedos, braços de magreza atávica sacolejando, lábios quase sempre se movendo em maledicências contra o tempo – percebe de chofre que sou um forasteiro. Denuncia-me o cenho franzido, o ar pensativo e meio besta do transeunte ainda inexperiente nestes caminhos e ruelas; denuncia-me o semblante angustiado de quem está geográfica e irremediavelmente perdido, os olhos voejantes, apalermados, à procura de um nome de rua, de um número de residência, de um ponto de referência ou de um passante que possa ceder, solidariamente, uma migalhinha de informação. Três anos de Curitiba não foram suficientes para que eu aprendesse algo a respeito da amalucada geografia de suas ruas e, como alguém que aqui chegou anteontem, continuo perdendo-me diariamente por estes caminhos, mais confuso do que cartela de surdo em bingo, batendo-me de um lado a outro como peixe em água rasa.
Arrisco que provavelmente tenho um defeito fisiológico ainda insondável pela medicina moderna; sinto-me inspirado a dizer que nasci sem determinada parte do cérebro (e, vá lá, sem uma meia dúzia de outras também), uma parte que, imagino eu, seria similar a um GPS, espécie de navegador biológico providencial destinado a guiar-nos pelas emaranhadas veredas do dia-a-dia. Ou então, se a tenho, a cretina recusa-se calhordamente a funcionar. Fica lá, vadia que é, engasgando como a ignição de carro a álcool no inverno.
Ou então a culpa é mesmo de Curitiba, essa cidade grande, esse emaranhado incompreensível, para um bicho do mato interiorano, de ruas e avenidas. Ponto. É tudo culpa dela.
Meu sofrimento é antigo. Lembro que logo que cheguei à cidade, ainda no caminho da rodoviária até a nova casa, tive a desgraçada idéia de comprar um mapa. Afinal, pensava eu, sou novato, meio chucro, pé-vermelho, matuto, destreinado nestas empreitadas de cidade grande – o seguro morreu de velho, pois pois. Mapa em punho, sempre que precisava ir a algum lugar, estendia o danado sobre o chão da pequena sala de meu novo teto e ficava lá, sentado num poltrona esfarrapada, analisando o dito cujo como quem analisa algo de suma importância, algo a ver com um possível fim do mundo como o conhecemos. Era um processo laborioso, diligente e demorado; divisava o caminho mais fácil – leia-se: o mais reto –, memorizava-o, calculava o tempo que levaria de acordo com a escala, respirava fundo, acendia um cigarro, dava um gole na cachaça para criar coragem, uma última olhadela no mapa, isso mesmo, corretíssimo, não vai ter erro e, enfim!, atirava-me à rua, com os passos firmes e resolutos de quem tem tudo sob controle.
Sim, senhor. Não há problema. Sei perfeitamente onde estou – imaginava-me, às vezes, dizendo a algum taxista que abordaria arbitrariamente, e que me olharia com os olhos tolos de quem não perguntou coisa alguma. – De qualquer forma, agradeço por importar-se. Obrigado! Obrigado!
Então daria as costas e deixaria o taxista lá; ele, o taxista, que tantas vezes feriu meu ego, àquele a que tantas vezes havia sido forçado a recorrer na humilhante tarefa de pedir uma informação, admitindo minha inépcia, minha culpa, minha incapacidade, minha incompetência. Teria, enfim, minha revanche!
Naturalmente, enquanto me perdia nessas projeções idiotas, pouca importância dava ao caminho. Quando atentava novamente com a estrada, era assaltado pela desleal sensação de que algo não estava saindo de acordo com o riscado. Inquietava-me, checava as placas, voltava algumas quadras, a absoluta certeza de estar perdido roendo-me o amor-próprio. Em pouco tempo, desencontrava-me de mim mesmo e, aí sim, perdia-me de vez. Respirava, tentando estabelecer alguma lógica no percurso, ficava zanzando, uma barata tonta proferindo impropérios contra o pobre diabo do mapa, que pouco tinha a ver com minha congênita e atroz falta de senso de direção. Enfim, esgotado, tomava a decisão.
– Com licença, senhor, poderia me dar uma informação?
O taxista olhava-me, o rosto iluminado pelo sorriso triunfante e vingativo – sou eu quem dá as cartas por aqui, seu molecote! Eu saia cabisbaixo, contando os passos, meus pensamentos bestemando contra mim mesmo.
De lá pra cá, pouco mudou. Continuo um perfeito idiota, cabeceando contra a geografia errante destas ruas. Às vezes, é fato, num golpe de pura sorte, acerto de primeira um percurso qualquer. Aí sim, estufo o peito como um galo de rinha, e encaro Curitiba de frente – vai ter que armar outra arapuca se quiser me pegar, sua provinciazinha arisca! O coração fica eufórico, como o do jogador que sabe ter as cartas do jogo; imagino a viagem de volta, de uma tranqüilidade caipira, sem percalços. À porta de saída, porém, minha alegria e minha postura insolentes dão lugar aos ombros arcados, um corpo subserviente diante do gigante de pedra, o rosto abatido como que por um tiro de rifle. Batata! Esqueci-me completamente do caminho de volta.

2 Comments:

At 11:47 AM, Blogger iasa monique said...

só admiro, não comento.

 
At 1:54 PM, Blogger sularien said...

Sandoval, já tentou aquele recurso do GoogleMaps que tem o trajeto? É fantástico!

Ligar para o 156 antes de sair de casa tb ajuda. O problema é se a telefonista for mais perdida que vc. Mas, é como dizem, dois perdidos juntos fazem uma cagada mais fenomenal do que um sozinho.

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E nem me chamou para o bar, né?

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Espero pela parte II!

 

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