Monday, June 18, 2007

TODO JORNALISTA É UM ESCRITOR FRUSTRADO
(Também, não era pra menos):

O toque do telefone foi a fagulha que percorreu todos os circuitos de seus sistema nervoso e colocou em movimento, dentro de seu crânio, os cilindros de um barulhento motor. Triiiiimmmmm! Um toque estridente, em falsete, mas potente como um trovão. Boris tentou abrir os olhos, mas a claridade da televisão lhe entrou cabeça adentro como se suas órbitas oculares estivessem vazias, e cutucou seu cérebro com um alfinete. Pim! Triiiiimmmmm! O telefone estava na mesa ao lado da cama, mas não dava para alcança-lo só esticando o braço e a simples tentativa de mover o corpo fazia suas entranhas descreverem “luppings”. O aparelho era um modelo antigo, daqueles em que ainda era preciso discar, e de um branco encardido. Triiiiimmmmm! Triiiiimmmmm! Boris desgrudou a cara do lençol e girou a cabeça. Era como se seus miolos estivessem soltos na caixa craniana. Triiiiimmmmm! Triiiiimmmmm! Triiiiimmmmm!
E de repente parou.
Boris voltou a se acomodar e tentou reconstituir a noite anterior. A empreitada foi bem sucedida, mas concluiu que poderia ter deixado a porra da lembrança quieta, engavetada em sabe-se lá qual arquivo carcomido de sua memória. Não tinha a mínima idéia de quanto tempo dormira, mas concluiu acertadamente que passavam das duas da tarde. Uma garoa tamborilava na janela.
O telefone voltou a fazer sua algazarra fanfarrona. Seja lá quem fosse, não se podia negar que o desgraçado era obstinado. De qualquer forma, era melhor que não fosse do trabalho. No estado em que estava, sua presença ou não hoje faria a mesma diferença que diálogos em um filme pornô. Num esforço hercúleo, começou a sentar-se na cama. Estava enjoado. O telefone berrava como uma criança mimada que não tem seu capricho atendido. Triiiiimmmmm! Triiiiimmmmm!
Nesse momento o vizinho do apartamento contíguo começa a martelar uma parede. Pac! Pac! Pac! Um barulho metálico e seco, como se estivesse brincando de bateria com panelas. Pac! Pac! Triiiiimmmmm! Pac! Triiiiimmmmm! Triiiiimmmmm! Quando você está de ressaca o Universo inteiro conspira para que a porra toda vire uma enxaqueca. Boris esfregou os olhos e esperou os miolos, que dançavam aleatoriamente dentro de seu crânio, retomarem seus respectivos lugares.
Pegou o telefone. Era melhor que não fosse do trabalho.
Balbuciou grogue e silabadamente:
- A-lô
Tum. Tum. Tum. Tum.
Boris se perguntou se Deus teria telefone.
Olhou em volta.
O vizinho continuava batendo. Por uns dois minutos nomeou-o com todas as expressões degradantes que conseguiu lembrar. Imaginou que ser o Senhor dos cristãos, judeus, ou muçulmanos deveria ser o ponto alto na hierarquia das divindades. Ser deus dos hindus deveria ser uma merda. Têm-se muitos vizinhos.
(...)
- Outra vez?
É, outra vez?
- Por quê?
Isso merecia uma resposta a altura. Mas ela é a minha mãe.
- Quando vai parar?
Triiiiimmmmm! O eco ainda reverbera entre o cérebro e a parte interna do crânio. Ele sente a coisa quicando perfeitamente, de um lado pro outro, como uma bolinha de ping-pong. Pic! Pic! Pic!
- Quando vai se tornar um homem?
Ele reflete. A bolinha continua. Pic! Pic! Ela tem razão. Não deveria correr pra lá toda vez que a cantineira coloca geléia de amoras em vez de pasta de amendoim no seu sanduíche.
- Eu te dei tudo. Fiz o que pude.
Era tudo o que ele não precisava agora.
- Te faltou alguma coisa? Juro, fiz de tudo.
Na fogueira das vaidades, sempre tem alguém disposto a pôr mais lenha.
- Fiz de tudo, de tudo, de tudo.
Será que um homem de 25 anos, 65 quilos e um metro e 85 poderia sair pelo ralo de um banheiro.
- Na sua idade, eu já estava casada. Você já tinha nascido.
Claro! Um filho e todos os meus problemas serão substituídos por duas trocas de fraudas diárias.
- Juro, te dei tudo o que podia. Fiz de tudo.
Ah, então hoje vamos ficar nesses gravetinhos?
- De tudo.
Pic! Pic! Pic!
(...)
Agora, a TV tinge o rosto de Boris de rosa néon. Em cima da escrivaninha as formigas disputam espaço com os copos que se acumulam sabe Deus desde quando. (Três? Quatro dias? Uma semana?) Boris jazz no canto do sofá que deve ter valido alguma coisa no dia em que foi comprado, encolhido, quase em posição fetal. Um cigarro ainda virgem pende dos lábios secos. Se beber mais uma dose poderá doar o sistema circulatório para a medicina, a propósito da formação das futuras gerações de anatomistas. Na parede, o arremedo do que deveria ser uma pintura esconde parte de um bege horrivelmente feio e insosso. A garoa continua batucando tediosamente na vidraça. O carpete gasto, molhado e fedorento está cheio de cinzas. O telefone não toca mais e o vizinho deve ter desistido da idéia de derrubar a casa. Ou isso, ou está tentando emprestar uma marreta. O importante é que lá, em seu apartamento, o mundo parece ter entrado em intervalo. E é quando o mundo vai para o comercial que se percebe como a programação é senil. A mesma vitrine de açougue num caleidoscópio psicodélico. Sempre.

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